O Paraíso, a Ironia e o Destino. Histórias de uma história que se misturam ao longo desta minha história – parte 1

Faz agora um século que o Titanic, o maior navio de cruzeiros do mundo na época, embateu num iceberg. O transatlântico, que na época se considerava insubmergível, afundou a pique em menos de três horas, depois do seu casco se partir em dois. Mais de 1500 pessoas morreram.

Por estes dias, faz agora um século, o barco rumava ainda em águas tranquilas levando a bordo 885 membros da tripulação e 2.228 passageiros de todo o tipo e de todas as classes sociais, que de uma maneira ou de outra tinham embarcado com um propósito comum, a busca de um sonho. Para uns alcançar o Sonho Americano, para outros o sonho de participar numa viagem inesquecível, regada de champagne e bailes, a bordo do mais luxuoso paquete até então construído.

Faz dia 15 de Abril um século que esse sonho foi abruptamente arrancado a todas essas pessoas.

Para marcar este centenário da tragédia correm pelo mundo uma série de homenagens e eventos. Um navio de cruzeiro, o MS Balmoral, o maior e mais novo barco da fred Olsen, está neste momento a seguir o itinerário original do navio; e, neste momento, a navegar nas mesmas águas onde há um século atrás ele navegava. Vai seguir passo a passo o seu itinerário e recordar o seu trágico percurso, terminando a viagem onde o Titanic a deveria terminar: em Nova Iorque.

A agência britânica Luxury and More Travel está a organizar expedições (a rondar os US$ 60.000) em cápsulas submarinas aos destroços do navio que jazem no fundo do mar, a 3.800 metros da superfície.

Várias cidades do Reino Unido farão exposições. Na Irlanda do Norte, em Belfast, onde o Titanic foi construído, um complexo chamado Titanic Quarter está a ganhar vida onde, e entre outros, um edifício está ser construído com as linhas do mítico navio e o mais completo museu sobre este transatlântico promete atrair mais turistas à cidade.

No cinema, o filme de James Cameron com Leonardo DiCaprio e Kate Winslet vai ganhar uma nova versão em 3D.

Mas, mais uma vez, “vestida” de Sheherazade lusa, e tal como no final de cada uma das Mil e uma Noites se escrevia: “Neste momento da narração, Shererazade viu despontar a manhã e, discreta como era, calou-se”. O mesmo vai acontecer comigo.

Mas não julguem que este post é mais interessante do que o que se segue na próxima história…

P.S.  Entretanto, e enquanto acabava de escrever estas linhas, soube que a viagem do MS Balmoral, onde tudo tinha sido pensado para lembrar a mesma de há 100 anos – a mesma data da partida, o mesmo número de passageiros vestidos ao rigor da época, a mesma rota, as mesmas refeições preparadas a partir do menu original, uma orquestra a interpretar os temas que também se ouviram no “Titanic”… –, após ter enfrentado logo no início ondas de 6 metros de altura e ventos de 70km/h, que levou ao cancelamento de inúmeros espectáculos e originou várias situações de enjoo entre os passageiros, uma emergência médica obrigou-o a inverter a marcha e regressar para perto da costa, para que um operador de câmara da BBC, Tim Rex, fosse retirado do navio por um helicóptero.

Depois, o MS Balmoral, a quem já haviam chamado Cruzeiro Macabro, voltou à sua rota, prosseguindo a viagem. No entanto, um dos pontos altos do programa está em riscos de não será cumprido: o de estar no mesmo lugar à hora exacta em que o acidente ocorreu, para uma cerimónia a bordo em homenagem às vítimas que descansam no fundo do mar…

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Everybody comes to Rick’s …menos nós! (extracto de uma viagem a Casablanca, Outubro 2008)

Há anos, mesmo muitos anos, que não ia a Casablanca,– a não ser em escala para seguir para Marrakech e nunca saindo do aeroporto.
Mas, nesta minha viagem decidi ficar uma noite por aqui.
Devem haver poucas cidades no mundo como esta, que tenham o seu nome tão fortemente associado a um filme, e, ao ser pronunciado, com uma carga tão romântica.
É quase impossível não aterrrar por aqui, pelo menos para os nostálgicos cinéfilos ou almas poéticas (em ambas me incluo), e não procurar vestígios da glamourosa Casablanca de Rick Blaine e de Ilsa Lund… mas nada!
O que sobrava do “Casablanca” nesta cidade, até há bem pouco tempo era mesmo apenas o nome (nem o filme aqui foi rodado, antes nos longínquos estúdios de Hollywood).
De qualquer maneira sabia que, agora, 66 anos depois do filme ter sido feito, existia um Rick’s Café em Casablanca. Tinha lido que o mítico clube nocturno havia saído finalmente do celulóide graças à determinação e imaginação de uma ex-diplomata norte-americana, Kathy Kriger, que tinha aberto num antigo casarão, um restaurante-piano-bar numa imagem aproximada ao verdadeiro. Que o espaço funcionava diariamente, para almoços e jantares, que tinha um pianista (marroquino de seu nome… Issam), que tocava músicas dos anos 40 e 50, incluindo claro está “As time goes by” e que, aos domingos, passava o inesquecível filme com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman.
E assim, tal como em Casablanca, onde “Everybody comes to Rick’s”, nessa noite, rumámos até lá, determinados a conhecer o local, já nos imaginando a beber uma taça de champagne e a pedir: “Play it again, Sam… Play “As Time Goes by.”
O Rick’s fica na cidade velha, junto ao porto, onde o resto das espessas muralhas deixadas pelos portugueses se misturam com o branco caiado da medina.
Encontrava-se misteriosamente iluminado, entre as palmeiras da rua deserta…
Só se via um homem à porta, no alto dos degraus.
Claro que não era Humphrey Bogart a fumar um cigarro e a olhar para o negro céu, observando um avião que partia rumo a Lisboa: antes, um porteiro de djellaba.
Estava uma certa neblina… Ou seria da minha imaginação? Não, foi antes a decepção de sermos barrados à porta. O Rick’s encontrava-se fechado para uma festa privada. Tentámos convencer o porteiro, numa ladaínha sem fim e sem sorte. Evocando as minhas “origens berberes”, e pedindo, docemente, em árabe, recebi do porteiro o milagroso “salvo-conduto”, um passaporte para a liberdade, neste caso não um bilhete de avião para Lisboa, pois esse estava garantido no cofre do meu quarto de hotel, mas sim o direito a ultrapassar a desejada porta de madeira. Mas foi como morrer na praia. O porteiro, com medo de ser despedido, não me deixou passar além da entrada. Percebi que, para lá, havia um pátio com arcos, caiados de branco, mas mais nada consegui distinguir, a não ser luzes ténues, sombras e fumo, tal como no filme… ou seria da minha imaginação?
Dias depois, no regresso de Marrakech e antes de apanharmos o avião para Lisboa, com um almoço marcado em Casablanca passámos de novo pelo Rick’s. Um outro porteiro barrou-nos mais uma vez a entrada, alegando que se encontrava fechado e que só abriria ao meio-dia. Faltavam 30 minutos e a nossa ladaínha foi a mesma. Chegámos até a apelar o facto de sermos jornalistas e querermos apenas espreitar para divulgar depois o espaço. Tivemos então um laivo de esperança, quando o porteiro pegou no telemóvel e falou para a dita proprietária a pedir autorização. Sem sorte! Pelos vistos a entrada aqui é mais difícil e selectiva que no verdadeiro Rick’s do filme!
Dizem, e não são as más línguas, que Kathy Kriger, incorporou a alma de Rick Blaine, circulando todas as noites pelo café vestida à Humphrey Bogart, com direito a papillon e tudo, e que, tal como ele, vive no andar superior do café.
A “Madame Rick”, como gosta de ser conhecida pelas pessoas da medina, pelos vistos também gosta de barrar a entrada do seu clube aos simples mortais, ou direi antes “aos suspeitos do costume” ?
E assim, partimos de Casablanca sem conhecer o famoso café, … poderei no entanto  dizer que esta viagem  was “ the beginning of a beautiful friendship” , e que “ We’ll always have…Marrakech!”
Aqui fica a morada: 248, Bd Sour Jdid. Place du jardin public,  Ancienne medina. Se alguém por lá passar, mande-me notícias!
E assim, partimos de Casablanca sem conhecer o famoso café, … poderei no entanto  dizer que esta viagem  was “ the beginning of a beautiful friendship” , e que “ We’ll always have…Marrakech!”
Aqui fica a morada: 248, Bd Sour Jdid. Place du jardin public,  Ancienne medina. Se alguém por lá passar, mande-me notícias!
P.S. Para os menos atentos e certamente aos menores de 18 anos, nada do que está escrito aqui são private jokes, são mesmo expressões imortalizadas pelas personagens de Casablanca, adaptadas ao episódio desta divertida viagem.
Here’s looking at you, kid!

 

 

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O último capítulo de Karen…

 

Falava eu no post anterior do regresso de Karen à Dinamarca e de como ela se tinha entregue por completo à escrita, quando vi surgir a manhã e me calei. Agora que o luar brilha no céu, eis que me disponho a continuar a narração…

“Tive uma fazenda em África, no sopé das montanhas Ngong.
O equador passa a sessenta quilómetros a norte desta região e a fazenda ficava a uma altitude de mais de dois mil metros. Durante o dia sentíamo-nos mais perto do sol, mas as madrugadas e os fins de tarde eram límpidos e tranquilos e as noites frias.
A situação geográfica e a altitude combinavam-se para criar uma paisagem inigualável. A terra não era farta nem luxuriante; era África destilada por dois mil metros de altitude, a essência forte e depurada de um continente.” …

É assim que começa Out of Africa, o livro que Karen publica em 1937, um canto de um enorme amor e de imensa saudade ao país que a adoptara e enfeitiçara para sempre. Bastantes anos mais tarde é assim também que começa o filme, com Meryl Streep em voz off numa imagem esmagadora da savana africana, e o qual tornaria a vida de Karen Blixen e Denys Finch-Hatton num imortal romance e num verdadeiro hino à beleza de África, colocando o Quénia nas rotas turísticas de todas as agências de viagem pelo mundo fora.

Mas apesar do imenso sucesso que o livro obteve aquando da sua publicação,  o sonho de Karen regressar a África continua a não se realizar. A Segunda Guerra Mundial rebenta e, mais uma vez, Karen vê os seus planos adiados. As suas viagens não passam da Europa, na qual, agora como correspondente de um jornal dinamarquês, se desloca por algumas capitais europeias. Nessa altura, as notícias de África cessam por um “longo e obscuro tempo”. Só depois de terminada a Guerra Karen soube da morte do seu fiel Farah. “Foi difícil fazer entrar no meu espírito a notícia da morte de Farah (…) Por fim, reconheci a situação: não era a primeira vez que eu o mandava à minha frente para algum local desconhecido para ali armar tenda para mim”.

Karen continua a escrever e todas as suas publicações são um sucesso. No entanto, o seu sonho de regressar nunca será realizado.

Numa das suas últimas entrevistas Karen Blixen confessa que nunca se arrependeu de ter ido para África, apesar de aí ter perdido tudo o que mais amava. “Olhei os leões nos olhos e dormi sob o cruzeiro do Sul, vi incendiar-se o capim nas grandes pradarias que se cobrem de fina erva depois das chuvas, fui amiga de somalis, quicuios e maasais, voei sobre as colinas de Ngong (…) Nunca estarei suficientemente agradecida a África pelo muito que me deu”.

Mas lá longe da Dinamarca, lá muito para Sul, onde o sol é quente e as cores e cheiros da terra são tão diferentes do seu país de nascença, Karen iria ser sempre lembrada. Em 1955, na Somália, um movimento nacionalista e religioso insurgia-se contra os europeus. Um escritor dinamarquês foi apanhado no meio de uma dessas multidões enfurecidas. Ao começar a ser apedrejado foi de repente salvo por um homem. É que o seu salvador tinha sido criado de uma grande senhora dinamarquesa, conhecida entre todas as tribos da Somália.

Quando, anos mais tarde, um jornalista que recolhia dados para a biografia de Karen Blixen vai ao Quénia, na zona da antiga fazenda é-lhe dito que um velhote costumava aparecer, de quando em quando, pedindo autorização para se passear no parque e “pensar nos tempos que já lá vão”. O jornalista consegue contactar com o tal velhote, de nome Juma, um dos antigos empregados da baronesa e, enquanto com ele falava, duas águias voaram por cima deles, sendo apontadas por Juma como “velhas amigas da Memsahib”. Ele próprio tinha-as ouvido gritar “Deus a abençoe”.

No dia 7 de setembro de 1962, Karen Blixen morria na sua casa de Rungstedlund, na Dinamarca. Tinha 77 anos e foi enterrada, conforme pedira à família, junto a uma grande árvore, tal como o faziam os “seus” quicuios lá longe nas planícies africanas.

Actualmente, a casa de Karen Blixen no Quénia é um museu. Todas as salas e quartos estão repletos de objectos e movéis seus que foram recuperados; restos de um passado que, aos poucos, se torna fácil de identificar: o relógio de cuco, que fazia a delícia das crianças da fazenda; as peles de leões caçados nos seus inúmeros safaris; a velha máquina de escrever Corona, sua companhia em tantas noites de solidão; o gramofone que espalhava as sinfonias de Mozart pelas savanas; quadros e fotografias de antigos visitantes e criados da fazenda…

Apesar de vazia e inabitada há tantos anos, a sua presença continua muito forte. Por todos os recantos se ouve baixinho, lenta e repetidamente, um murmúrio que teimosamente não quis partir:

I had a farm in Africa… I had a farm in Africa… at the foot at Ngong Hills…

P.S. a ficção só se mistura com a realidade nas imagens aqui colocadas, umas vezes por falta das verdadeiras, outras por serem demasiado bonitas para não aparecerem…

FIM.

 

 

 

 

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Eu não esqueci Memsahib…


Ao regressar à Dinamarca Karen Blixen dá início a uma nova fase da sua vida. Era extremamente difícil para uma mulher como ela, aos 46 anos, voltar a viver com a mãe num estado de desilusão e frustração e, para culminar, totalmente arruinada.

“Nos primeiros meses após o meu regresso tive grande dificuldade em considerar fosse o que fosse como realidade”, escreveria nas suas memórias.

Karen voltara às restrições domésticas de que anos antes fugira. Era insuportável para ela ter de pedir dinheiro à mãe, até para comprar um maço de tabaco, e ainda mais insuportável era sentir-se tratada por todos como uma jovem adolescente, até mesmo pelo chauffeur, que não a deixava guiar o carro.

Além disso, a própria vida na Dinamarca estava completamente mudada. Aquela época de grandeza, com muitos bailes, caçadas e mordomia, que Karen conhecera, e toda aquela vida principesca no meio de castelos de encantar, estava em declínio.

Karen sentia-se desajustada no meio de todas aquelas paredes frias, num país onde a noite aparecia às três da tarde e a presença do Sol era ténue e fugaz, dando lugar a uma chuva fria e a um vento gélido que soprava do Norte.

A família não tinha noção do que Karen tinha perdido ao deixar África, não era só uma posição conquistada, não era apenas uma fazenda ou um negócio de café, mas sim a sua própria vida.

Durante os primeiros tempos da sua chegada, os seus sonhos foram atormentados por África e pelos seus velhos companheiros que, de noite, a vinham visitar, deixando as quentes savanas, fazendo-lhe aparições no seu quarto escuro e gelado.

Mas tudo isto lhe parecia mais real do que a sua vida ali na Dinamarca. “África fez-me, a Dinamarca destruiu-me.”

Todas as noites, durante o resto da sua vida, Karen olharia em direcção ao Sul. “Se eu conheço uma canção de África, das girafas, da lua nova africana, dos arados nos campos e dos rostos suados dos apanhadores de café, a África conhecerá uma canção minha?”

Claro que em África Karen não tinha sido esquecida; no entanto, as comunicações vindas de lá chegavam de uma forma estranha, irreal, por meio de linhas desordenadas, frases tortas, parecendo “mais como sombras ou miragens do que notícias de uma realidade”.

A maioria dos seus antigos empregados não sabia escrever e, quando algum lhe queria dar notícias, dirigia-se a um escritor de cartas profissional, geralmente indiano, que se encontrava sentado à porta dos correios, à espera de serviço. “Os escribas não sabem muito inglês e dificilmente se poderá dizer que saibam escrever, embora eles julguem saber. Para mostrarem a sua arte, enriquecem as cartas com inúmeros floreados, o que torna difícil decifrá-las.

“Eu não esqueci a si Memsahib. Ilustre Membsahib. Agora todos os seus criados nunca contentes porque fora do país. Se nós era pássaro nós voar e ir ver a si. Depois voltar. Escreva e diga a nós de volta. Nós pensamos volta. Por causa porquê? Pensamos ainda lembra nossa cara todos e nomes nossa mãe. Coisas aqui não tem boas. Se neste sítio estava velha Memsahib, gente deste sítio portava-se melhor.”

Desde que chegara à Dinamarca, Karen tentava encontrar uma forma de se tornar financeiramente independente. E, mais uma vez, é na escrita que  vai encontrar um refúgio, um novo trilho que vai começar a percorrer: a de contadora de histórias.

“Pode-se suportar qualquer desgosto, se o transformarmos numa história.” Algumas delas tinha-as contado junto à lareira de Denys e resultado foi Sete Contos Góticos, que publica sob o pseudónimo masculino de Isak Dinesen, em 1933. O livro teve um enorme sucesso e, entusiasmada, Karen esperava que, com o dinheiro que rendesse a publicação, pudesse regressar a África e construir um hospital para crianças maasai. Esse sonho não iria, porém, realizar-se. Em 1936, rodeada pelos quadros que pintara na fazenda, Karen começa a escrever sobre África. “Há quem trabalhe muito para assegurar o futuro; o meu espírito gastava-se em trabalho e inquietação para assegurar o passado”.

Mas, mais uma vez, “vestida” de Sheherazade lusa, e tal como no final de cada uma das Mil e uma Noites se escrevia: “Neste momento da narração, Shererazade viu despontar a manhã e, discreta como era, calou-se”. O mesmo vai acontecer comigo…

P.S. a ficção só se mistura com a realidade nas imagens aqui colocadas, umas vezes por falta das verdadeiras, outras por serem demasiado bonitas para não aparecerem…

 

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O adeus de Karen à “África Sua”…

Depois da morte de Finch-Hatton, e com a aproximação da partida, a altiva ex-baronesa era uma sombra de si própria.  Karen não acreditava que em breve deixaria para sempre o seu país do coração, tudo lhe parecia um sonho mau, algo irreal que não lhe estava a acontecer.  “Durante essa época, uma coisa curiosa foi o facto de eu nunca ter acreditado que teria de abandonar a fazenda e deixar África. As pessoas à minha roda, todas elas razoáveis, diziam-me que assim teria de ser; a cada distribuição do correio recebia cartas da Dinamarca a provar que assim era e todos os factos do meu quotidiano apontavam nesse sentido. No entanto, nada se encontrava mais afastado dos meus pensamentos, e eu continuava a acreditar que os meus ossos ficariam depositados em solo africano. Esta fé tão firme não tinha outros alicerces, outra razão de ser, que não fosse a minha completa incapacidade de imaginar qualquer coisa de diferente. (…) Deste modo, fui a última pessoa a compreender que tinha que partir. Quando revejo os últimos meses que passei em África, parece-me que as coisas inanimadas se deram conta da minha partida iminente muito tempo antes de eu própria me aperceber do que se iria passar. As montanhas, as florestas, as planícies, os rios, o vento, todos sabiam que nos íamos separar. Quando comecei a fazer os acordos com o destino e as negociações acerca da venda da fazenda tiveram início, a atitude da paisagem para comigo modificou-se. Até então eu fizera parte dela: a seca havia sido como que uma febre e as flores que despontavam na planície como que um vestido novo. Naquele momento, o país desligava-se de mim, ficando um pouco para trás, a fim de eu o poder ver nitidamente como um todo.”

É nessa altura, mesmo antes de partir, que Karen tem uma alegria na imensa tristeza em que se via rodeada: o novo governador concede uma porção de terras para os seus Kikuyus na reserva florestal de Dagoretti. Finalmente a sua imensa cruzada tinha dado resultado. De certa maneira, o seu coração podia partir um pouco mais leve por saber que os seus colonos não seriam expatriados no seu próprio país.

Karen passou os últimos meses na “sua” fazenda, que já não lhe pertencia, mas que os compradores lhe tinham oferecido para que ficasse o tempo que achasse necessário cobrando-lhe, por razões legais, o aluguer de um xelim por dia.

Karen leiloou tudo o que lhe pertencia, com a ajuda sempre preciosa de Farah. “Acedera em desfazer-me de todas as coisas que me pertenciam, uma a uma, como uma espécie de resgate pela minha vida, mas na época em que nada me restava. Eu mesma era a mais leve delas todas, podendo entregar-me nas mãos do destino para que ele se livrasse de mim.”

Os seus animais domésticos, como os cães e os cavalos, também eles foram partindo, sendo oferecidos a amigos seus. “Fui até Nairobi montada no meu cavalo favorito, Rouge, muito lentamente (…) Seria estranho para Rouge, pensava eu, seguir pela estrada de Nairobi e não regressar. Instalei-o, com alguma dificuldade, no vagão de cavalos do comboio de Naivasha e senti, pela última vez, o seu focinho aveludado contra as minhas mãos e rosto. Não te deixarei partir, Rouge, sem que me cumules de bençãos.”

Não te deixarei partir, sem que me cumules de bençãos, uma frase que Karen tanto gostava de repetir e utilizar em diversas ocasiões.

Antes de deixar África a lua reinava cheia no céu que cintilava nas divisões vazias de sua casa. “Imaginei que a lua poderia estar a olhar para o interior da casa e a perguntar-se quanto tempo contava eu ainda ficar num lugar de onde já tudo o resto havia partido.”

Também em forma de despedida, os velhos kikuyus resolveram fazer “ngoma” em sua homenagem.  Era um tipo de “ngoma” que outrora tivera muita importância, mas que naquele tempo raramente era realizada. No dia marcado, os velhos dançarinos começaram a chegar para representarem a dança dos anciãos, dedicada inteiramente à baronesa. Só que, no momento em que iam dar início à cerimónia, apareceu um polícia de Nairobi, informando que o Governo proibia a realização do evento.

E, quando chegou finalmente o dia da partida, Karen confessa que aprenderia uma estranha lição, a de ser possível acontecerem coisas que não conseguimos imaginar, nem antecipadamente, nem no momento em que ocorrem, nem sequer depois, quando consideradas retrospectivamente.

“Não era eu que me ia embora, não tinha poder suficiente para deixar África, era o país que, lenta e gravemente, se afastava de mim, como o mar da maré baixa. Disse adeus a cada um dos meu criados e, quando saí, apesar das cuidadosas instruções para fecharem as portas, deixaram a porta principal aberta atrás de mim. Tratava-se de um gesto característico dos nativos, como se pretendessem dizer que eu ia voltar um dia…”

Na estação de Nairobi, muitos dos seus amigos e a maior parte dos somalis da cidade ali se encontravam para dela se despedirem.
Farah acompanhou-a até Mombaça, ficando lá até o barco partir.
“E, enquanto eu via no cais o seu vulto escuro e imóvel ir diminuindo até desaparecer, sentia como se perdesse uma parte de mim própria.”

Mas, mais uma vez, “vestida” de Sheherazade lusa, e tal como no final de cada uma das Mil e uma Noites se escrevia: “Neste momento da narração, Shererazade viu despontar a manhã e, discreta como era, calou-se”. O mesmo vai acontecer comigo…

P.S. a ficção só se mistura com a realidade nas imagens aqui colocadas, umas vezes por falta das verdadeiras, outras por serem demasiado bonitas para não aparecerem…

 

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